Afinal assino este escrito como economista e não me apetece falar da matéria. Os dados económicos até marcham bem. E a geringonça anda a marcar pontos, o que enerva certas “falanges”. O orçamento está na calha. E vejam lá se fabricam um orçamento mais capaz para uma melhor distribuição da riqueza.

Hoje apetece-me ir por outros caminhos. Falar d’ “O Anel do Imperador” ou de como a jovem madeirense, D. Izabel de S., foi “p’rá cama” com Napoleão em plena baía do Funchal, em mar um tanto quanto alteroso, aquando da sua passagem a caminho do desterro na ilha de Santa Helena.

Napoleão aportou de facto na Madeira, para se resguardar de uma grande tempestade. Apesar de prisioneiro britânico, a bordo do navio, era-lhe dado um tratamento VIP e, nesse contexto, foi recebido pelo cônsul inglês no Funchal. Uma “memória romanceada” ou talvez uma novela – deixo essa discussão para gente bem entendida em tão importante “mistério” – em que a jovem madeirense de 17 anos, alta, bela, morena, eventualmente com um ADN francês/italiano, um tanto “desbotado” com os ares marítimos do Funchal, aspirava conhecer Napoleão Bonaparte ou mesmo ir um pouco mais longe.

A mãe era cúmplice do crescimento contínuo de pensamentos tão enlevados de sua filha por Napoleão (não sei se seria mesmo só cúmplice…), mas às escondidas do pai, um nobre de origem italiana mais vocacionado, na sua qualidade de latino, para os enredos de Madre Paula e pouco dado à contemplação do mar da baía do Funchal, onde a sua filha e a digníssima esposa repousavam ou pousavam o estafado de suas vidas.

Foi o que aconteceu nesta “memória romanceada”, lida na sessão da Classe de Letras da Academia das Ciências de 18 de Janeiro de 1934 e votada por unanimidade para publicação nas “Memórias” da mesma Academia. A dada altura da introdução, o autor, o major J. Reis Gomes, escreve: “Talvez se possa afirmar que Napoleão, sinceramente, só foi amado na Madeira”. Perpassa da “memória romanceada” que Napoleão, ao receber a jovem a bordo, depois de uma intervenção diplomática arrojada e desejos intensamente manifestados para tal, por Izabel de S. através de um padrinho influente muito ligado ao cônsul britânico no Funchal, Henry Veitch, até derramou uma lágrima choruda e a menina comovida ia desmaiando, atirando-se para os braços de Veitch que ficou perplexo.

E a conversa ia-se desenrolando com oferendas várias, de parte a parte, os livros oferecidos para leitura de viagem e os famosos bolinhos das freiras de Santa Clara encomendados para o efeito e um poema da jovem, muito íntimo, dedicadíssimo a Napoleão, que nem à mãe cúmplice mostrou e da parte de Napoleão, face a tanta fartura, “uma medalha suspensa dum delicado cordão de oiro”. Na hora da despedida, Napoleão, pálido, abraçou Izabel de S., de que já havia a conclusão de ser sua prima afastada, pelo lado italiano do pai, desejando-lhe e parece que sentindo, intui-se, o que ele já não lhe podia dar: “um esposo digno do seu sangue e do seu nobre coração”.

Izabel de S., face a este desejo de Napoleão, até aí sempre falando em voz muito suave e submissa, por vezes pouco audível, salta: “Nunca!… em tom vivo, olhando face a face o Imperador”. Juramento de fidelidade eterna, certamente próprio daquela época, ou pelo menos assim o autor da novela idealizou. Izabel de S. acaba por abandonar mais tarde a sua casa, que se situava na freguesia de Santa Maria Maior, para os lados da Barreirinha, de onde espreitava o mar, e recolher ao convento de Santa Clara, como uma viuvinha espiritual, para cumprir aquele “Nunca”, de fidelidade “canina”, de que não sei se alguma vez se terá arrependido. Como o autor não explorou essa faceta, deixo o desafio à mente livre de cada um.

Segundo consta, Napoleão não terá sido muito bafejado pela sorte nos amores. Parece que também não era muito dotado nesta matéria. Até dizia olhar para a mulher como uma subalterna excepto quando caía de amores por alguma, em que tudo era perfeito, mesmo sabendo que o não era, como no caso de Josefina ou ainda no da polaca Walewska – que frequentou a alcova de Napoleão durante oito anos, não por amor mas por “dever” patriótico – que “lhe sacou” a reconstrução da Polónia. O exílio em Santa Helena chumbou esse desígnio prometido, apenas um filho bastardo lhe sacou e do governo polaco, pelo dever cumprido, uma “mensagem” de gratidão. Napoleão pelo menos visitou Varsóvia. Varsóvia nem tudo perdeu.

O major J. Reis Gomes tem o seu nome numa rua do Funchal, ali para os lados do centro comercial La Vie. Era um homem, em certos aspectos, um pouco fora de tempo. Militar de carreira, muito ligado à escrita, onde as peças e ensaios sobre teatro merecem destaque. Aliás, li algures, que Reis Gomes foi considerado “o primeiro crítico de teatro de Portugal”. Foi muito dinâmico na área da cultura, director de vários jornais da Madeira e esteve ligado aos primórdios do cinema na Madeira, em termos sobretudo da introdução de técnicas novas, vindas de Paris.

Em 1934, data desta “memória romanceada”, como lhe chamou o autor, Reis Gomes, havia outras alternativas para escrever sobre desterrados. Tinha-os tido ali bem perto. Os desterrados da Revolta da Madeira (1931) e, antes ainda no país, os do Levantamento de Fevereiro de 1927 em Lisboa e Porto, contra a Ditadura Militar, instituída com o 28 de Maio de 1926. Alguns deportados do Movimento anti Ditadura Militar de Fevereiro de 1927 foram até bater à Madeira.

O movimento de desterrados ou de deportados que daí resultou, estava sem dúvida mais próximo da realidade nacional e então, no caso da Madeira, onde a situação era ainda bem sentida e vivida com muita gente deportada em Cabo Verde, no campo de concentração da ilha de São Nicolau e outras partes de Cabo Verde, de onde alguns jamais voltaram, como o general Sousa Dias, não foi capaz de inspirar o major Reis Gomes.

São opções. Esta de escrever sobre Napoleão não trazia consequências políticas e, certamente, era um trabalho mais próximo do pensamento do major. Também tocava muito o coração de certas senhoras da classe possidente numa altura em que pouco havia para fazer.

Escrever sobre os deportados da Revolta da Madeira, uma opção de resistência, traria efeitos certamente arriscados, e havia que não arriscar, para além de não colher o entusiamo do amor da jovem madeirense por Bonaparte, o que veio a animar a conversa de muitas noites das classes finas da Madeira.